O
massacre cometido por
Dylan Roof, um jovem branco de 21 anos que queria iniciar uma
guerra racial, na cidade da
Carolina do Sul, Charleston, nos Estados Unidos, induzido pelo ódio, matou 9
pessoas na histórica Igreja Metodista Episcopal Africana Emanuel. Fundada em
1816, a Igreja foi um símbolo da luta dos negros contra a escravidão e pelos
direitos civis. Este atentado pode, à primeira vista, indicar que, talvez, as chagas da
sociedade brasileira que estão vindo à tona não seja tão grave assim, afinal,
logo ali nos Estados Unidos, símbolo de liberdade e democracia, as coisas
parecem bem piores. Infelizmente, não é bem assim.
Esse
abjeto crime de ódio em Charleston é construído em função de duas sombras da
História norte-americana; a primeira delas, a sombra da escravidão e de um
regime político segregacionista até meados dos anos 60 do século XX, é vista
pelo mundo e por muitos dos seus cidadãos, como a maior vergonha da nação
estadunidense; a outra, a sombra da tradição armamentista, é vista tanto por
eles próprios quanto por boa parte do mundo como orgulho, indicativo de uma
pátria segura, civilizada e livre. As duas são questões profundamente
enraizadas historicamente na sociedade norte-americana, que fizeram parte da
própria fundação dos Estados Unidos.
A
profunda divisão entre o norte dos Estados Unidos, livre e industrializado, e o
Sul escravocrata e agrário, presente desde o século XVIII, acabou gerando uma
das maiores feridas da sua história: a Guerra Civil ou Guerra de Secessão
(1861-1865), vencida pelos Estados do Norte, que mantiveram a união da
federação e aboliram a escravidão do país. Sob seus escombros, no entanto,
emergiu um sistema político e legal segregacionista, o Jim Crow, que separavam
os brancos dos negros nos estabelecimentos, na vida social e política e a organização
racista Ku Klux Klan, que apoiava a supremacia branca e o protestantismo e promovia
atos de violência extremada contra negros são apenas alguns exemplos disso.
Apenas na década de 1960, com a intensificação da luta pelos direitos civis dos
negros liderados pelo Dr. Martin Luther King e outros ativistas, é que,
formalmente, os negros tiveram finalmente a igualdade assegurada. Mas na
prática não foi exatamente o que aconteceu e, nos Estados do Sul, que viveram a
escravidão e segregação por vários séculos, a chaga ainda persiste e por vezes
algum episódio com esse teor surge com força. Não é à toa que o atentado
cometido por Dylan Roof, o jovem branco que atirou e matou nove pessoas, na
quinta feira, tenha acontecido em Charleston, na Carolina do Sul, o primeiro
estado que se separou da União e fundou os Estados Confederados da América, recebendo
logo em seguida a adesão de Alabama, Flórida, Geórgia, Louisiana e Mississipi. Também
não é à toa os freqüentes casos de violência policial contra jovens negros por
todos os Estados Unidos, casos que vem se multiplicando dia após dia sendo
cometidos por uma força de Estado que até pouco tempo atrás estava acostumada a
ver os negros como inferiores, à margem da sociedade.
A
outra sombra também está enraizada nos fundamentos da sociedade norte-americana
tanto quanto o a sombra da escravidão, pois vem desde antes da independência
dos Estados Unidos. Segundo o historiador Leandro Karnal, grupos ou milícias de
colonos autônomos sabotavam o exército inglês presente na América do Norte, que
surgiram pela necessidade de proteger-se contra os ataques da Inglaterra na
colônia, os “cidadãos em armas”. Esse processo foi fundamental para o
desencadeamento da Guerra de Independência dos Estados Unidos e a prova de
reconhecimento dessa mentalidade é que na futura Constituição dos Estados
Unidos foi garantido o direito de portar arma, o que se mantém até hoje. Porém,
cada caso como o massacre de Charleston evidencia que é necessário mudar essa
mentalidade. Charleston não foi um caso isolado, mas encontra-se na sequência
de várias outras tragédias e violências gratuitas, domésticas e acidentes
causados pela facilidade de porte de armas.
Vendendo uma ideia de segurança, a medida
provoca mais violência. A
discurso de Obama sobre Charleston foi enfático: “nós
não temos todos os fatos, mas nós sabemos que, mais uma vez, pessoas inocentes
foram mortas em parte porque alguém que queria fazer algum mal não teve
problema em pegar uma arma”. Sobre o criminoso Dylan Roof, sabe-se que recebeu a arma de
presente de aniversário do pai ao completar 21 anos. O presidente norte-americano continua seu duro
discurso reconhecendo que esse tipo de violência em massa não acontece com
tanta freqüência em outros países desenvolvidos e deixa bem claro que “em algum
momento vai ser importante para o americano enfrentar isso e nós sermos capazes
de mudar a forma como pensamos sobre a questão da violência armada
coletivamente”.
Mas
o que isso tem a ver com o Brasil, com o momento sombrio que estamos vivendo
atualmente? Alguns podem alegar que nós não chegamos a tanto. Provavelmente,
mas será que chegaríamos? Não chegamos por quê? Porque não queremos ou porque
não dispomos de meios para isso? Afinal, nessas últimas semanas evidenciamos situações
freqüentes de violência preocupantes contra minorias que podem parecer leve
comparadas à tragédias como a de Charleston, mas indica a presença de uma
sombra crescente que deve ser contida, deve ser denunciada e combatida. O
deputado estadual evangélico
Adalto Santos (PSB), diante da polêmica da
representação da cruz pela transsexual na Parada Gay em São Paulo, mostrou o
quanto seria capaz se fosse muçulmano e tivesse uma espingarda; uma menina
candomblecista foi
apedrejada por um grupo de evangélicos, sem contar com as
invasões e violências recorrentes contra terreiros de religiões de matrizes
africanas; usar uma camisa vermelha agora em conglomerações pode ser motivo
para ser hostilizado ou pior. A bancada do BBB (Boi, Bíblia e Bala) conseguiu
passar a redução da maioridade penal e está na sua pauta conservadora a questão
do armamento pessoal, com o
projeto do deputado Peninha (PMDB-SC) que acaba com
o Estatuto do Desarmamento, medida que encontra consonância mais uma vez com
uma parcela considerável da população que vê a questão meramente como proteção
pessoal e não como violência coletiva. Talvez estejamos sim tão doentes para
ações extremadas como a que aconteceu em Charleston, apenas temos a sorte de,
por enquanto, a epidemia não ser fatal.